Um Lance de "Dês" do Grande Sertão – Augusto de Campos
Fichamento de Alberto Cunha
Última atualização: 19 de abril de 2024
Um Lance de “Dês” do Grande Sertão (1) – Augusto de Campos
O grande conteúdo do “Grande Sertão: Veredas” se resolve não só através da linguagem, mas na linguagem. A linguagem não é o veículo; ela assume a iniciativa dos procedimentos narrativos e identifica-se, isomorficamente, à carga conteudística que carrega, sendo texto e pretexto para a invenção estética;
A obra de Rosa vem “retomar e redimensionar”(2) a tradição de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, em “Macunaíma”, “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”;
O autor aborda o paralelo entre as obras “Un Coup de Dés” e “Finnegans Wake”, de Mallarmé e James Joyce, respectivamente, previamente traçado por David Hayman, em “Joyce et Mallarmé”. Aparentemente, poderia se afirmar que se tratam de obras opostas: um poema espacial de 11 páginas e um romance de 628;
O paralelo traçado aponta para melhor compreender, situar, histórica e criticamente, os fenômenos artísticos, estabelecendo nexos de relação estética;
Enquanto as palavras de Un Coup de Dés estão em “perpétua revolução por detrás da máscara de impassibilidade, sofrendo um processo de montagem”, Joyce procede uma violenta deformação léxica em Finnegans Wake;
A relação entre os romances de Joyce e de Rosa é ainda mais evidente, especialmente nos procedimentos linguísticos e estruturais, aproximados pelo gênero em comum, o romance. Verifica-se uma atitude experimentalista perante a linguagem;
O Grande Sertão é como um riocorrente, sem pausas e fôlegos. A ordem dos eventos é a ordem da memória, e o próprio Riobaldo afirma, em diversas passagens, que está contando “errado, pelos altos” ou “fora, coisas divagadas”;
A superação da estrutura linear da unidade temporística abre espaço para uma forma “aberta, atemporal, aperspectívica”(3);
Há, ademais, uma certa tematização musical da narração. O primeiro a superar o mero fluxo linear, buscando uma configuração musical a sua poética, foi Mallarmé;
No domínio do romance, é em Joyce que esse manuseio musical dos temas aparece. Em “Ulysses”, também de Joyce, verifica-se o sistema de repetições simples, o remordimento do subconsciente;
Em “Finnegans Wake”, as variações temáticas, a tematização de frases ou cadências. Por exemplo, “as águas do rio Liffey reverberam com motivos próprios”(4). Também temos a alusão e manifestação de personagens “através de uma infinita gama de variantes em torno de seus nomes”(5);
Em “Grande Sertão”, os motivos condutores podem elaborar-se a partir de uma frase, como “Viver é muito perigoso” ou “O diabo na rua, no meio do redemunho”, ou mesmo de uma palavra “Nonada”, “Sertão”, “Travessia”, podendo se entremear;
Nonada, em especial, funciona muito bem neste uso, “pois que coincide com a palavra ‘nada’, de muito maior vivência, de sorte que sua simples enunciação, mesmo sem segundas intenções, tende a gerar um conflito semântico”(6). Seus fragmentos são espalhados no texto, coincidindo com sílabas de outras palavras, e multiplicando os níveis de significado;
Tal temática musical e timbrística nos leva ao fonema representado pela letra d;
Para compreender esta prevalência do fonema da letra d, recorre-se à dúvida existencial que Rosa propõe: Deus ou o Demo?(7);
O fonema d é o ponto de partida da estruturação, na linguagem, do dilema;
Não por isso que não foi apenas com o Demo o encontro de Riobaldo no tema-epígrafe do livro: o encontro-desafio, na encruzilhada, à noite. Trata-se do duelo com o mestre Acaso, como no poema de Mallarmé, que implica tanto numa vitória, como numa derrota – a realização e a persistência da dúvida(8);
Diadorim, personagem-enigma, também está no lance de dês, fazendo-o adquirir novas ressonâncias. Seu nome é isomórfico em relação a sua personalidade;
Diadorim é criatura “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor…”, e seu nome pode ser representado por duas vertentes: (i) Dia + adora + im; e (ii) Diá + dor + im;
Na segunda vertente, não há dúvidas da referência ao Diabo(9): “O amor condenado que Riobaldo nutre por Diadorim lança-o, frequentemente, na indagação da procedência (demoníaca?) de seu sentimento: “Então o senhor me responda: o amor assim pode vir do Demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe?” (p. 133)”(10);
O sufixo im, que completa ambas as vertentes de análise do nome de Diadorim, “envolve tal nome próprio numa imprecisão de gênero que está em relação isomórfica com o personagem”(11), visto que é utilizado, sob a forma de apócope, tanto na abreviação de palavras do gênero masculino (p. ex. riachim (p. 272)), como do gênero feminino (p. ex. neblim (p. 508)). Aliás, diz Riobaldo: “Diadorim é minha neblina” (p. 25)(12);
O nome, aliás, reverbera ao longo da obra, seja pela incidência de fonemas em d, ou o emprego da rima em im: “São pegadas sonoras que assinalam com um timbre inconfundível a presença do personagem, como que a prolongar seu “prazo de perfume””(13);
Outro fonema, entre os chamados timbres-temáticos da obra, é o representado pela letra n, que vem apontar para o tema da negativa, do não ser;
Quando Riobaldo se recusa a aceitar a chefia de Diadorim, irrompe em um “belíssimo movimento musical-explosivo”(14), que chega a deformar e transformar a palavra “negócio”, contaminando-a com a ideia de negação, “fazendo-a vibrar com outro significado além do habitual”(15);
O fonema s, ao seu turno, relaciona-se com um dos grandes temas entrelaçados na narrativa: o sertão. Tal fonema está associado também ao Satanás;
Para além das aliterações e efeitos timbrísticos, Guimarães Rosa realiza efeitos melopaicos através de metamorfoses associativas e manobras “por dentro da linguagem”(16): uma verdadeira tecedura musical;
Diante de tamanha experimentação linguística em Grande Sertão, inevitável a aproximação entre Guimarães Rosa e James Joyce;
“Rosa reabilita o romance brasileiro em seu aspecto estético. Os exemplos que apresentamos da estilística estrutural e verbal do Grande Sertão bem demonstram que estamos em presença de um prosador que é, acima de tudo, um inventor”(17).
(1) CAMPOS, Augusto de. Um Lance de “Dês” do Grande Sertão. In: Poesia Antipoesia Antropofagia & Cia. / Augusto de Campos. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2015. Pp. 15-48.
(2) Idem. P. 15.
(3) Idem. P. 22.
(4) Note-se o motivo condutor, ou leitmotif, do rio Liffey nestas três passagens: (i) “Beside the rivering waters of, hitherandthithering waters of. Night! (p. 216)”; (ii) “with the water of, hoompsydoompsy walters of. High! (p. 373)”; e (iii) “Amingst the living waters of, the living in giving waters of. Tight! (p. 462)”. JOYCE, apud. Idem, P. 26.
(5) CAMPOS, op. cit. P. 24.
(6) Idem. Pp. 28-29.
(7) “Inserindo dois vocábulos de mesmo peso, por assim dizer, um em cada prato da balança do dilema fundamental, Guimarães Rosa consegue uma plena identificação fundo-forma: isomorfismo”. Idem. P. 31.
(8) “Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma… Meu medo é este. A quem vendi? (pp. 456-7)” ROSA, apud. Idem. P. 32.
(9) Trazendo evidências que sustentam a interpretação: “certifique-se o leitor: o diabo é tratado de diá, à p. 40, num contexto, aliás, que diz respeito a Diadorim; à p. 553, Diadorim é também chamado de Diá!!! Positivamente, é mais do que uma coincidência” (pág. 36). E prossegue, citando trecho da obra de ROSA em análise: “Vem horas digo: se um aquele amor veio de Deus, como veio então – o outro? Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre. Tormentos. (p. 134)” Idem. 36.
(10) CAMPOS, op. cit. P. 35.
(11) Idem. P. 37.
(12) ROSA, apud. Ibidem.
(13) CAMPOS, op. cit., P. 38.
(14) Idem. P. 40.
(15) Ibidem.
(16) Idem. P. 44.
(17) Idem. P. 45.