Ensaio sobre uma crise tecno-feudal-ansiolítica

Bruno Alcantara

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

 

Deixa o algoritmo me levar

Certa noite dessas de quarta-feira, sem muito o que fazer, boiando nas profundezas do Youtube, sem rumo, acabei clicando no vídeo da conversa entre Yanis Varoufakis e Slavoj Zizek no Festival INDIGO 2021.

No vídeo, que assisti pelas próximas duas horas, me chamou atenção um tema em especial, defendido pelo grego, Varoufakis: o fim do capitalismo. Segundo o economista, que já foi Ministro das Finanças da Grécia, o capitalismo “cresceu para além de si”, tendo efetivamente deixado de existir como o conhecemos, isto é, amparado no lucro e no mercado como seus pilares, inaugurando o que ele chama de tecnofeudalismo.

O fim dos mercados?

Uma marca de sapatos deseja vender sua nova linha de calçados. Para isso, ela vai precisar exibir publicidade para o público e disponibilizar um meio para esse público poder adquirir o produto.

No capitalismo, o empresário teria que acessar ao mercado de meios de comunicação para divulgar anúncios; ao mercado imobiliário para alugar um ponto na avenida principal; cuidar de algum nível de logística; etc. Cada modelo de negócio enfrentaria um mercado diferente com diferentes atores.

O que vemos hoje, contudo, é que as plataformas tomaram esse lugar dos mercados. Porém, elas não são mercados. Todas as interações ocorridas no âmbito das plataformas são controladas, mediadas, entregues, arquitetadas por um ator incontestado – elas mesmas. Tal situação, como descrita, não seria comparável ao surgimento de um mercado monopolizado ou a um super-capitalismo, mas sim a uma verdadeira oclusão do mercado e a sua substituição completa. Por isso, Varoufakis vai dizer que os mercados foram substituídos por feudos digitais.

Nós, servos

A cada segundo de nossas vidas estamos gerando riqueza para essas plataformas, seja carregando o celular no bolso ou clicando em links, seguindo páginas, curtindo posts, pois todos esses dados estão aprimorando o seu produto e, portanto, lhe gerando riqueza. Em outras palavras, estamos gerando capital para essas plataformas sem sequer perceber. E mais: estamos nos dedicando cada vez mais a abrir nossas vidas dentro dessas plataformas e enriquecê-las ainda mais.

Por isso, a população em geral, nós, somos os servos, uma vez que trabalhamos sem remuneração para esses senhores feudais. Nesse contexto, parece ser difícil não sentir alguma espécie de angústia existencial. Além de trabalharmos, se conseguirmos emprego, para enriquecer algum milionário, ganhando uma miséria, também trabalhamos (obrigatoriamente) para algum bilionário, e de graça!

Toda essa tecnologia, da maneira como se apresenta hoje, não entrega a emancipação que promete. Pelo contrário, ela nos obriga a responder mensagens (ou ansiar respostas) de trabalho depois da nossa hora de trabalhar; a comprar cursos que não vamos fazer; a comparar os nossos corpos com os de pessoas que tem como única atividade o cuidado com o corpo; etc. Estamos mais vulneráveis a sermos manipulados. Pior: não começamos a falar dos algoritmos, inteligências artificiais, metaverso, criptomoeda (e nem vamos).

Cloud Capital

Yanis Varoufakis explica que as plataformas deram início ao fenômeno que ele chama de Cloud Capital, que pode ser explicado através de três transformações tecnológicas: i) o machine-learning, que se desenvolveu de algoritmos capazes de se adaptarem sozinhos, orientados pelos seus resultados; ii) a substituição de computadores “normais” por neural networks; e iii) o uso de algoritmos capazes de reinforcement-learning em neural networks.

Como consequência, passou a ser possível processar quantidades de dados absolutamente gigantescas, gerando a possibilidade, por parte das “empresas cloudalistas”, de criar espaços personalizados com uma precisão sem precedentes na capacidade de influenciar comportamentos, criar tendências, realizar vendas, capturar a nossa atenção, reforçar crenças, prever posicionamentos políticos, etc.

As Big Techs conseguiram também combinar essas tecnologias com o trabalho fornecido gratuitamente por praticamente todos nós, que passamos o dia alimentando seus servidores com um tsunami de dados pessoais, a fim de eliminar a necessidade de trazer as implicações do mercado laboral para a sua operação. Em comparação com outras indústrias, essa é uma característica sem paralelo que cria uma vantagem competitiva absolutamente insuperável.

Lucro para quê?

Se o mercado deixou de ser um pilar do nosso modelo econômico atual, também o lucro perdeu centralidade, passando a ser opcional para as Big Techs.

A partir de 2008, com a crise financeira, os bancos centrais passaram a criar dinheiro para evitar que instituições financeiras quebrassem. Ao mesmo tempo, o clima de investimentos estava frio por conta do pânico causado pela depressão. A partir disso, os juros eram baixíssimos e as Big Techs acessavam crédito mesmo sem interesse em fazer investimentos. Ao fim dos anos 2010, a situação era tal que essas empresas não precisavam mais lucrar para as suas ações valorizarem.

Empresas do Cloud Capital registraram aumento no valor de suas ações, enriquecendo pessoalmente seus acionistas, de maneira extraordinária, mesmo registrando nenhum centavo de lucro em seus balanços contábeis e não pagando impostos por este motivo (o que não significa que seus faturamentos eram modestos).

Enquanto isso, os empregos desapareceram e a desigualdade social aumentou; uma nova oligarquia de bilionários nasceu e a inflação corrói o poder de compra das classes populares. Guerras quentes e frias surgem.

As mais óbvias conclusões

Para mim, quanto custa o dinheiro? Abro o aplicativo do Nubank. Há disponível um empréstimo com 3,45% de juros ao mês. Abro o aplicativo do Uber. Posso levar Maria do Centro ao Cabral por 9 reais. Abro o aplicativo do iFood. Embolso 4 reais se eu levar o lanche do Carlos do McDonalds até o seu apartamento.

A ansiedade toma conta: vou conseguir ter um carro? uma casa? minhas roupas não servem mais; meu corpo não serve mais; eu não sirvo; automedicação; terapia.

Segundo pesquisa de 2017 da Organização Mundial da Saúde, 26% dos brasileiros têm algum nível de ansiedade. Uma pesquisa realizada entre 2020 e 2023, pela startup Guia da Alma, que obteve 24 mil respostas, aponta que mais de 60% dos brasileiros têm “alto nível de ansiedade”. Segundo o 2023 EY Gen Z Segmentation Study, a preocupação financeira é um dos principais causadores de ansiedade na Geração Z: mais de 50% dos entrevistados sente-se muito ou extremamente preocupado com não ter dinheiro o suficiente.

Abro o aplicativo do Youtube. Vamos ver o que tem aqui para dar uma espairecida. Olha só que legal, é uma conversa entre o Yanis…

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