Comunicação de Dziga Viértov sobre Kino-Pravda (9 de junho de 1924) — Dziga Viértov

Fichamento de Bruno Alcantara

Última atualização: 4 de julho de 2024

Comunicação de Dziga Viértov sobre Kino-Pravda (9 de junho de 1924) — Dziga Viértov (1)

O texto de Viértov está dividido em um parágrafo inicial de abertura e seis partes. São elas: 1) sobre as experiências que antecederam a Kino-Pravda; 2) sobre a luta por Kino-Pravda; 3) sobre o que é Kino-Pravda; 4) sobre como é feita Kino-Pravda; 5) sobre o mais recente cine-objeto dos kinocs; e 6) sobre as cine-falsificações.

A principal hipótese do texto é a de que uma sociedade em revolução permanente precisa desenvolver uma cinematografia que seja igualmente revolucionária e proletária.

Abertura

Viértov inicia o texto com a menção de que Kino-Pravda(2) está ligada “ao passado das crônicas” e, simultaneamente, é a porta-voz dos kinocs(3).

1. Sobre as experiências que antecederam a Kino-Pravda

Após a “Revolução de Outubro”, as crônicas do antigo Império Russo foram substituídas por Kino-Nediêlia(4), produzida pela recém-criada VFKO(5), que, inicialmente, pouco se diferenciavam, uma vez que apenas possuíam caráter oficial soviético, e não mais imperial.

Viértov assinala que, neste início, estava pouco familiarizado com a técnica do cinema, porém, logo notou que ela estava tomada por “fórmulas inabaláveis”. Passou a experienciar reunir excertos de filmes em grupos mais ou menos concordantes. Através desses experimentos, veio a questionar as fórmulas predominantes e abdicou de qualquer ligação literária entre as imagens.

2. Sobre a luta por Kino-Pravda

Após a produção de um longa-metragem para a comemoração do aniversário da Revolução de Outubro, Viértov se dedicou a três trabalhos que formaram a base da concepção de Kino-Pravda. São eles: 1) A batalha de Tsarítsyn; 2) Os trens partidários do VTsIK; e 3) História da Guerra Civil. Tais experiências reforçaram sua desconfiança frente à “cinematografia artística”. Lançou um primeiro manifesto na edição nº1 da Kino-Fot(6) defendendo uma abordagem que partia do real (e não do roteiro), gerando alvoroço entre os “Cine-Apóstolos”.

Viértov ressalta o cuidado que teve com as primeiras edições de Kino-Pravda. Neste sentido, aponta o “camarada” Liberman, diretor da Goskinó(7), como alguém que, apesar da oposição crescente, não o corrigiu ou desviou de seu intento.

A oposição teria atingido seu auge com o lançamento da 14ª edição de Kino-Pravda, que chegou a ter metade do seu conteúdo censurado. A crítica, sugere Viértov, não teria compreendido a ausência de ligação literária entre as imagens. Ainda assim, crianças, jovens e clubes operários teriam recebido muito bem o filme.

Diante de tais circunstâncias, os kinocs passaram a afirmar que os dramas artísticos influenciavam de maneira desmoralizante o proletariado, lançando o slogan: “O drama cinematográfico é o entorpecente do povo!”.

Refletindo sobre o impacto que Kino-Pravda teve no “repertório operário”, Viértov recorda que, apesar do reduzido alcance que os poucos exemplares poderiam atingir, foram responsáveis por uma grande agitação contra as “cine-igrejas” (salas de cinema) onde passavam os dramas artísticos.

As acusações dos “cine-conservas”, como Viértov caracterizou seus detratores, que, afirma, ocultavam-se sob uma “casca revolucionária”, deveriam ser combatidas através de três perspectivas. São elas: 1) ao defender os dramas artísticos, os “conservas” terminariam por fazer brilhar no coração do proletariado russo a imagem do herói-milionário americano; 2) por estarem engajados na cinematografia artística, uma vez que reconhecessem o valor do Kino-Pravda, precisariam recomeçar o seu trabalho do zero, o que lhes seria um estorvo; e 3) para além dos “conservas”, os grupos intermediários, assim como os social-democratas estrangeiros, eram ainda mais perigosos, na medida em que deturpavam o projeto revolucionário Kino-Pravda, mal copiando-o em forma e esvaziando em conteúdo, portanto, amenizando-o e lhe tirando a força.

3. Sobre o que é Kino-Pravda

Para Viértov, Kino-Pravda era um “grande martelo” com o qual, defendendo a linha leninista, os kinocs haveriam de golpear a “cine-contrarrevolução mundial e nacional”. Em outras palavras, Kino-Pravda se tratava de um importante instrumento da revolução para lutar contra as forças conservadoras dentro e fora da União Soviética.

4. Sobre como é feita Kino-Pravda

Viértov não aceitava a ideia de que seu material era aleatório. Defendia que seus filmes se organizavam a partir da vida para, então, chegar a um tema. Contrariamente, os “conservas” primeiramente organizavam um roteiro e, após, faziam com que a vida se adequasse a ele.

Partindo de bons materiais cinematográficos, ficava como produto final um “rastro preciso e inimitável”(8) da vida que se passava diante das câmeras. Para Viértov, a qualidade técnica e o valor social e histórico do material advinha justamente dessa abordagem; o êxito era fazer com que a vida se manifestasse através do filme. Assim foram construídas as edições de Kino-Pravda, nas palavras do autor, “a partir de fragmentos da vida que entraram pela objetiva da câmera em momentos variados”(9).

O autor passa a abordar os materiais utilizados nas edições de Kino-Pravda a partir da 13ª edição. Em resumo: a) a 13ª edição contou com imagens de fragmentos da Guerra Civil, do dia da comemoração de cinco anos da Revolução de Outubro e do início da recuperação econômica da União Soviética; b) a 14ª edição contou com material que caracteriza as relações entre o mundo capitalista e a União Soviética; c) as 15ª e 16ª edições concentram registros de meses entre o inverno e a primavera; d) a 17ª edição contém material que revela a “circulação sanguínea” oriunda das ideias da Exposição Agropecuária que traz à cidade o campo; e) a 18ª edição, mencionada como um ponto de virada na compreensão acerca da realidade soviética, traz imagens do trajeto entre a Torre Eiffel, em Paris, e a fábrica Nadiéjdinski, passando por Moscou; e f) a 19ª edição, através de “nós visuais”, aproxima espaços e tempos antagônicos, como a cidade e o campo, o inverno e o verão, e o camponês e o operário, apoiadas, ao fim, por registros da família de Lênin que, após a sua morte, continuou a trabalhar com energia redobrada.

5. Sobre o mais recente cine-objeto dos kinocs

Ao mesmo tempo em que os kinocs produziam material cinematográfico para a Kino-Pravda, passaram também a produzir charges e cine-reclames, sob o argumento da utilidade de dominar tais “armas”.

Projetando o próximo trabalho cinematográfico dos kinocs, Viértov assinala que seria procedido sem um roteiro preliminar, dado que pressionar a realidade durante as filmagens geraria, como consequência, uma resposta da vida “com asquerosas caretas afetadas”(10). Ainda assim, a tentativa seria a de obter um material “mais claro” em comparação ao utilizado até então. O objetivo era captar a realidade com as próprias mãos; a motivação, a preocupação com o surgimento dos grupos intermediários que mais incomodavam do que os próprios inimigos monarquistas e da cinematografia artística.

6. Sobre as cine-falsificações

Para encerrar, Dziga Viértov adverte que os intermediários, copiadores e esvaziadores, estariam presentes nas telas soviéticas, atrasando a revolução. Por este motivo, seria imperativo valorizar o verdadeiro cinema revolucionário soviético, Kino-Pravda, explodindo a “Torre de Babel das Artes” e, assim, metaforicamente, incendiando o trabalho dos conciliadores.

Outras anotações

As partes do texto de Viértov se articulam de maneira a apresentar os kinocs e Kino-Pravda como parte integrante do movimento proletário revolucionário. Neste sentido, é possível notar uma narrativa semi-cronológica dos lançamentos, aspectos da construção das cine-crônicas, a sua proposta e características estéticas e o contexto social que se deu na luta contra os conservas e intermediários.

A conclusão do texto é a necessidade de persistir nos ideais revolucionários sem cessão de espaço para os conservadores. Abdicando de roteiros prévios, atores, atrizes, figurinos, estúdios e iluminação, Viértov e os kinocs lograram criar uma cinematografia soviética, proletária e revolucionária.

Notas

(1) VIÉRTOV, Dziga. Comunicação de Dziga Viértov sobre Kino-Pravda (9 de junho de 1924). In: Cine-olho: manifestos, projetos e outros escritos / Dziga Viértov; tradução, organização, apresentação e notas de Luis Felipe Labaki — São Paulo: Editora 34, 2022 (1ª Edição). pp. 115-125. Acesso pelo link.

(2) Kino-Pravda significa “Cinema-Verdade”. Cf. SADOUL, Georges, “História do Cinema Mundial, Volume I”, p. 170. Acesso pelo link em 04 de julho de 2024.

(3) Os kinocs foram um grupo de vanguarda soviético, apoiados pelo governo em 1922, do qual Dziga Viértov foi o primeiro a despontar, ao lado de seu cinegrafista Mikhail Kaufman. Cf. Idem. pp. 169-170.

(4) Kino-Nediêlia foi uma série de cinejornais produzidos por Viértov entre maio de 1918 e junho de 1919. Cf. Website da Austrian Film Museum, na Seção Collection Dziga Vertov, “About Kinonedelja”. Acesso pelo link em 05 de março de 2024.

(5) A VFKO, “Seção de Fotografia e Cinematografia de Todas as Rússias”, foi a primeira entidade destinada a controlar a produção e distribuição cinematográfica na União Soviética. Cf. FRANCISCON, Moisés Wagner e MARTINS, Gelise Cristine Ponce, “A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura”, p. 452. Acesso pelo link em 05 de março de 2024.

(6) Kino-Fot foi uma revista soviética fundada por Viértov em agosto de 1922. Cf. ALBERA, François, “A revolução permanente de Dziga Vertov”, p. 40.  Acesso pelo link em 06 de março de 2024.

(7) Goskinó foi a administração cinematográfica federal da União Soviética. Cf. Artigo da The Diplomat in Spain, publicado no dia 9 de setembro de 2014. Acesso pelo link em 06 de março de 2024.

(8) VIÉRTOV, Op. Cit., p. 121.

(9) Ibidem.

(10) Idem, p. 122.

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