Carta Anônima #01
XXXXXXX, se você pudesse ler esta carta, você provavelmente poderia prever cada palavra que eu terei escrito até a última, quando eu chegar ao ponto final. Mas você não faria isso por me conhecer tão bem, e sim pelo simples motivo de eu ter dito essas mesmas palavras inúmeras vezes para você — e, saiba, elas sempre foram verdadeiras.
Quando ficávamos um tempo sem conversar e, por qualquer motivo, de uma hora pra outra, passávamos dias conversando sem parar, eram algumas dessas palavras que eu dizia; e essas palavras que eu sei que você queria ouvir. Olhando agora pra aquele tempo, me pergunto sobre o que havia por trás dessas idas e vindas — e o quão paciente você era nos dias de nossa distância. Afinal, você sabia que logo eu voltaria com os mesmos dizeres.
Talvez, enfim, eu tenha algo novo a dizer — ou não. A verdade é que eu sempre voltei porque eu não conseguia lidar com a constante exposição a você. Eram constantes lembretes da sua textura, do seu rosto, seu cheiro e da forma como a sua pele atraía e eletrizava a minha.
Possivelmente, corro um risco, ainda agora, pensando nesses instantes e sensações que passei anos evitando, até que eu pudesse passar pelo menos um dia sem confabular sobre nós. Aliás, não tenho a menor dúvida que a única saída para mim foi justamente cortar todo e qualquer pedaço de você da minha existência.
Nunca fui muito capaz de controlar meus impulsos e tirar você da minha vida completamente. Você era, apesar de tudo, uma música que eu não podia parar de cantar; e mesmo quando as circunstâncias me ajudaram a entrar em abstinência, bastou vê-la pegando um elevador num lugar que eu sequer devia estar, que tudo, absolutamente tudo, silenciou e eu andei até você para dizer oi. E, como se com aquela mesma paciência, você sorriu e quis sentar pra conversar comigo — eu fui. O pior: nada havia mudado. Já haviam passado anos.
Pensando bem, tudo havia mudado, mas, ao mesmo tempo, naquele exato instante, meus olhos eram todos seus novamente, e eu sequer podia desviar o meu corpo da sua direção.
Agora, que já se passam ainda mais anos, só me resta viver essa ausência como sempre vivi — fossem dias, semanas ou anos. Vivo essa ausência, pois só sei viver nela; ou vivo para você. E, possivelmente, nunca foi isso que você quis. Você precisava dessa ausência, pois ela era a única capaz de me trazer de novo a você restaurado, recuperado, novo.
Quando estávamos próximos, mas logo antes de nos distanciarmos, o que sobrava de mim era sempre alguém frustrado, quebrado, dizendo outras coisas, que não as que você queria ouvir — e você conhece também muito bem essas outras palavras.
Nossa brigas eram tão sobre mim: a minha frustração, a minha queda, o meu desejo e a minha necessidade. Como você foi paciente… até o momento em que essa paciência se tornou desprezo, esquecimento, indiferença e, enfim, apenas uma parte do seu passado; e, se, então, eu jamais poderia prever que seria esse o caminho que trilharíamos, agora eu sei que era o único possível.
Uma vez que você me quebrou, não poderia ter volta. Nunca seríamos algo bonito para nós mesmos; e, mesmo que eu já soubesse disso de uma forma ou de outra, meus outros impulsos e pensamentos contradiziam tudo que poderia nos afastar, pois, quando se tratava de você, o que me guiava não era a razão.
Se agora olho pra trás, capaz de escrever essas palavras, não é por ter atingido uma especial paz de espírito no que se trata de tudo isso, mas por ter me acostumado com esse perene não-ser, não-estar, essa coisa toda ao contrário do que me urgia retornar; e, se ainda sonho com você, nem sequer os sonhos são sobre ter você aqui, como foram antes, mas como se você apenas fizesse parte da população das minhas madrugadas mais desafortunadas.
A verdade, enfim, é que de todas as coisas ruins que você me fez, as piores foram as boas. E, se um dia eu vier a saber que mais todos esses anos de ausência foram só você exercitando a sua paciência, até que eu voltasse, quem sabe eu esteja pronto para não lhe dar as palavras que você sempre buscou em mim. Se bem que já não creio nisso, e nem poderia.
XXXXX, 23 de abril de 2023.