Aspectos da música brasileira – Mário de Andrade

Fichamento de Carlos Henrique Sabino

Última atualização: 4 de junho de 2024

 

Aspectos da música brasileira (1) – Mário de Andrade

1) Evolução Social da Música no Brasil (1939):

1.1) I

  • Qual é o drama particular da música brasileira? Somente essa reflexão poderá elucidar a compreensão acerca da nossa música;

  • As antigas escolas européias tiveram a felicidade de ter um desenvolvimento “inconsciente”, isto é, sem uma vinculação à necessidade de afirmarem-se social e nacionalmente. A nossa música, por outro lado, teve que “forçar a sua marcha para se identificar ao movimento musical do mundo ou se dar significação mais funcional”(2);

  • Do ponto de vista social, a evolução da música brasileira teve um desenvolvimento lógico: i) Deus; ii) amor; e iii) nacionalidade. Tal lógica é peculiar à música, não sendo encontrada em outras artes, por conta do elemento individualista, que, na música, depende grandemente das condições técnicas e econômicas do meio(3);

  • O Parnasianismo(4), entre nós, foi um fenômeno típico da importação de iniciativa particular, revelando-se aberrante e contraditório, bem como perturbando violentamente a evolução da língua nacional e da nossa psicologia lírica; uma excrescência derrotista;

  • Sobre a expansão que teve o piano dentro da burguesia do Império: lógica e necessária. Trata-se de um instrumento “completo” que serve tanto de acompanhamento ao canto humano como solo;

  • Assim como o cravo funcionou na profanização da música européia, o piano funcionou na profanização da nossa música, sendo o instrumento da música do amor socializado com casamento e a benção divina;

  • Se no período do Império, a virtuosidade musical de palco estava confiada aos cantores, flautistas e violinistas, no período conseguinte, o piano adentra o palco e produz os primeiros gênios do nosso virtuosismo musical;

  • Importância do Professor italiano do Conservatório de São Paulo, Chiaffarelli, que deu aulas à Guiomar Novaes e Antonieta Rudge, na “floração pianística” da Cafelândia(5);

  • A propagação abusiva da pianolatria pelo Estado deu espaço, eventualmente, dadas as exigências técnicas e econômicas do Estado, as suas exigências técnicas e econômicas, adquirindo uma função cultural mais “pedagógica, profunda e variada que o internacionalismo industrial da virtuosidade pianística”(6);

  • O que deu de mais significativo do Conservatório, contudo, não foi a “sua orientação voluntariamente pianolátrica”(7), mas i) a “literatura musical” de Samuel Arcanjo dos Santos, Savino de Benedictis, Caldeira Filho, Nestor Ribeiro, e ii) os primeiros estudos de folclore musical, verdadeiramente científicos, de Oneyda Alvarenga e companheiros da Discoteca Pública. Aliás, o seu mais característico produto não foi um pianista entregue à virtuosidade, mas um que migrou para a composição e regência: Francisco Mignone;

  • O Conservatório foi um núcleo importante da composição nacional, observados Camargo Guarnieri, Artur Pereira e Frutuoso Viana;

  • A influência pedagógica do Conservatório de São Paulo se vê, inclusive em obras de musicologia escritas além de seus muros, como os livros de Furio Franceschini e Sá Pereira;

  • A música, sendo a mais coletivista das artes (seja a coletividade dos intérpretes ou ouvintes), fez o Conservatório, “nascido de interesses financeiros, visando adular a pianolatria paulista”(8), se tornar um centro importante da musicologia e composição nacional;

  • Se foi possível o surgimento de frei Vicente do Salvador na prosa brasileira do século XVII, ou do escultor Antônio Francisco Lisboa, no século XVIII, impossível seria o surgimento de um êmulo de Bach por esses tempos coloniais: seja por conta da inexistência de capelas corais ou de ouvintes para tais complicações musicais;

  • É o desenvolvimento técnico da coletividade que determina o aparecimento do indivíduo musical. No Brasil colônia, a música se fazia com importações de senhores de engenho, no ensino jesuístico e missas. Essa música, contudo, era caracterizada por não requisitar grande habilidade dos músicos: a) polifonia humilde; b) doce divagar solístico; c) canto em uníssono.

1.2) II

  • O desenvolvimento geral da música brasileira seguiu a evolução de qualquer outra civilização: primeiro Deus, depois o amor, e depois a nacionalidade;

  • A Colônia nunca se libertou da religiosidade musical. O incenso e o batuque místico imperavam;

  • O jesuítas serviram menos ao catolicismo que à colonização;

  • O “teatro profano” era esporádico e aristocrático. Nosso maior dramaturgo, o Judeu (António José da Silva), teve que se expandir em Portugal;

  • Em Salvador: uma igreja para cada dia do ano; Aleijadinho: para resguardar o incenso das ventanias alterosas; Padre José Maurício, o primeiro grande músico religioso: para “sonorizar as naves consoladoras deste mundo purgatorial”(9);

  • A música dos primeiros jesuítas foi necessária e social, assim como a religião é coisa necessária e social: a crença em Deus não é imposta de cima para baixo; as massas populares são crentes por natureza “por aquele necessário espírito místico próprio das mentalidades incipientes”(10);

  • Senão os Daimônios, os Antepassados são venerados. E essa crença comum em formas sobrenaturais torna-se religião no sentido de religare: fusão defensiva e protetora da coletividade. A música (ou melhor, o canto), nesse contexto, se apresenta como o elemento mais imprescindível do “entrar em contato místico” com o deus desmaterializado;

  • O canto se descola de nossa parte imaterial (que vive em nosso corpo) como um fluido vital, sendo mais propício a se “comunicar com o łuido imaterial dos ancestres e dos espíritos”(11);

(1) ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2012.

(2) Idem. P. 7.

(3) A técnica, entendida como os elementos práticos da obra de arte (óleo, mármore, bronze, etc), depende dos meios sociais. Contudo, o artista, por iniciativa exclusivamente pessoal, importa os referidos elementos e torna-os seus, mesmo num sentido contrário à coletividade. Um exemplo são os escritores brasileiros, que escreviam mesmo sem tipografias, buscando-as onde existissem.

(4) Andrade aponta como características do Parnasianismo: o verso pelo verso e o cultivo do castiçamento da linguagem.

(5) Idem. P. 8.

(6) Ibidem.

(7) Ibidem.

(8) Idem. P. 9.

(9) Idem. P. 10.

(10) Idem. P. 11.

(11) Ibidem.

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