04.05.2020

Não me causou espanto o primeiro pensamento que tive hoje: Lise. De início, a imagem de seu corpo descoberto. Com meus olhos fechados, a via, agora, com toda a atenção.

Estava com os cotovelos, antebraços e punhos apoiados na cama, bem como os seus joelhos e canelas; seus pés pendiam na beirada do colchão. Suas pernas eram grandes, como me agradava; compridas e densas. Ao mesmo tempo, não pareciam nada pesadas. E suas costas eram delicadas e elegantes, com uma curvatura suave. Via-a por detrás.

Agora que escrevo, recordo-me de quando, alguns meses antes, a vi pela primeira vez: quão linda. Tenho nítida em minha mente a sua primeira imagem  – surgindo do corredor do seu apartamento, de bermuda samba-canção e moletom da faculdade. Recordo-me da impressão que tive naquele momento: a impressão de que jamais teria aquelas pernas (logo me tomou conta uma tensão sexual crescente, e não foi fácil não ficar ali mais um pouco, alimentando a lembrança de sua imagem)

Precisava me concentrar.

Não demorou, me ocorreu Lise novamente. Dessa vez, contudo, sua presença me foi percebida de outra forma. Ela não estava mais ali corporalmente – só um sentimento de culpa que eu carregava pelo término de nosso relacionamento.

Imediatamente urgiu em mim levantar, acender todas as luzes e escrevê-la uma mensagem.

Respirava fundo, desvairando entre o meu corpo e a tentação do corpo dela e, logo que acreditava estar no controle de meus pensamentos, me encontrava elaborando tweets e stories em que eu escreveria uma mensagem subliminar para ela, torcendo que ela visse e se soubesse a destinatária. Contudo, permaneci ali – sentado. Procurava um estado profundo e espontâneo de presença.

Por algum motivo, contudo, me notei entretendo-me com todo aquele sentimento pesado de culpa de novo e de novo – como um gato brinca com um cordãozinho. E essa culpa vinha acompanhada de um dever meu de reconciliação.

Me bastava esse fardo.

Meus antigos saberes… um mundo que já não posso revirar. Nomes e lembranças; e todas aquelas meninas que conheci nos primeiros anos de minha vida e, hoje, ainda, me trazem imagens preciosíssimas. Imagens que me trazem a sensação de descoberta, as cores brilhosas da juventude, o domínio dos sentidos e a incapacidade de pensar no futuro.

E eu, diante de todos esses pedidos de desculpa que urgiam, vi crescer a intensidade dessa sensação. Senti que – ainda que com os olhos fechados – estava sendo tomado por uma espécie de cegueira, onde tudo acontecia em um outro tempo. Sentia-me incapaz de determinar as minhas próprias ações, como se me assaltasse uma corrente – eu, imobilizado.

Sem que eu desse conta que a paisagem da minha consciência tinha se alterado, me vi em um extenso gramado verde claro. Era possível sentir a umidade que vinha do solo, e quão densa era a sua riqueza. Eu me via em um lugar alto do terreno, com vista para todo o campo que se estendia aos meus pés. Via que em todas as suas extremidades, o campo era cercado por árvores grossas que pareciam pertencer a uma floresta intocada e ancestral.

Por alguns segundos, contemplei as pequenas sombras que se formavam com o sol a pino. O céu se abria absoluto; não havia uma nuvem sequer. Na parte mais baixa do campo, abaixo e um tanto distante de onde minha visão se situava, bem no seu centro, observei um punhado de meninas que caminhavam em sentidos aleatórios, uma para cada direção.

Curiosamente, a distância entre cada uma delas parecia absolutamente não se alterar, preservando sempre a harmonia da visão. Aliás, elas sequer desviavam seus caminhos num esforço de preservar tamanha harmonia, simplesmente perambulavam em marcha constante para lá e para cá. E eu intuía que elas poderiam estar desorientadas, ou sem rumo. Mas, mesmo assim, todas caminhavam sem hesitar, como se seguras do próximo passo. Estavam também todas bem asseadas, com os cabelos presos e nem sequer um amassado em seus vestidos simplórios de cores neutras. Pareciam não notar minha presença. Eu tinha certeza do nome de cada uma delas.

Aos poucos, porém, a imagem foi desvanecendo e a escuridão novamente me era percebida. Com isso, ia fugindo-me o efeito anestésico trazido por aquelas imagens, e eu voltava a sentir um grande sentimento de culpa. Desejei poder continuar lá infinitamente.

Eventualmente, contudo, busquei aceitar o fim daquele instante e me contentei com o novo agora.

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